segunda-feira, 31 de outubro de 2011

304

Sussuras-me ao ouvido a infinidade do que és. Tentas convencer o mundo e a ti, que o percurso que caminhas é o percurso destinado por uma natureza maior, mais complexa que nós. Agarras-te à humanidade, ao corpo, à carne, ao sangue, para encontrares uma justificação que seja tanto para ti, como para os outros, natural e válida. Buscas uma verdade sem entender que toda a verdade é uma mentira. Nada é natural, tudo se constrói.

sábado, 22 de outubro de 2011

295

Nascemos todos os dias para aquilo que nos rodeia. Uma planta que hoje está ali e ontem não estava. Uma pequena mutação diária do nosso corpo. Barba, cabelos e pelos que crescem, pele que morre. Todos os dias uma pequena mudança, todos os dias um pequeno verso. Poesia do dia-a-dia em modo contínuo. Música que não pára de soar nas cabeças. Vontade muita vontade de enterrar mais um dia e ver o que o amanhã traz nas gotas de orvalho para me refrescar.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

293

Quando a voz morrer, as palavras não forem mais escritas e o que sobre de mim se tornar em pó, essa poeira espalhada pelos ares fará as viagens que o corpo não chegou a fazer. Sobre o silêncio que não tem fim haverá as palavras entre nós, as proferidas e as não ditas. Sobre a história haverá estórias que um velho contará e que uma criança repetirá mais tarde. Sobre nós e sobre aquilo somos e fazemos dirás a verdade: conheci-te. Uma sensação de alegria e prazer de quem soube dizer ao mundo - eu estive aqui!

terça-feira, 18 de outubro de 2011

291

Adormeço nos versos que canto para uma folha de papel em branco. Durante o sono enquanto sou empurrado de sonho em sonho, pela vontade de um inconsciente que procura uma realidade onde se possa inspirar, o dia, os dias retornam. Salto de cenário em cenário sem saber me encontrar. Adormeço dentro do sonho e a folha já lá não está. Desespero, tenho vontade de escrever... tenho palavras para te dizer e não te encontro. Concentro-me no desejo de uma folha branca. A carícia de uma caneta sobre as suas fibras, o toque sereno que rapidamente se agita. Sou eu em ti. O meu corpo sobre o teu. O doce sabor da tua tinta. Exaustão de palavras e letras a correrem como se estivessem em fuga. Uma porta. Rápido! Uma porta que as segure. A música de fundo... a música que não é daqui. Acordar. Sobressalto em respiração ofegante, a corrida que agora parece minha. Em olhar rápido descubro-te. Sobre a mesa a folha e a caneta repousam lado a lado, serenas.

domingo, 16 de outubro de 2011

289

Existes. Onde eu sou mais fraco, onde a dor mais me corrói. Existes. Não desapareces, és, simplesmente como só tu sabes ser. Existes. No mais frágil da minha existência, nas partes do meu corpo que nem eu sabia que não conseguia controlar. Existes. Sorris. Desmentes o meu mundo construindo novaS realidades. Olhas-me cegando-me. Beijas-me matando-me.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

287

A tristeza das ruas molhadas em dias cinzentos de inverno encharca os olhos de quem passa. Uma poça de água reflecte um eu que não reconheço. Essa tristeza das ruas, das casas abandonadas encharca-me a mim também. Contagia-me. Sei que estás de partida assim como esta chuva fora de estação. És um fruto do verão e sei que o outono te levará para longe. Matas a sede em dias quentes mas não sabes viver com chuva. Se te chamas assim não tentes passar por outra pessoa e quando a saudade vier escreverei sobre ela. Quando a dor vier escreverei sobre nós e quando o amor vier, apenas farei silêncio cobrindo os teus lábios com um beijo.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

285

Sonhar em ti. A transformação de um corpo em sentidos. Toco-te levemente, sinto partes da tua pele. Escrevo os nossos nomes no que resta do calor apaixonado de uma madrugada que começa agora a florescer. A noite já esqueceu quem somos. Amanhã voltamos a ser quem fomos. Amantes de corpos abandonados numa cama que não sabe quem somos.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

283

Observo na noite negra a viagem que não planeei pela folha de papel branco pousada sobre a mesa. Ao longe o som do mar que embate com força nas rochas. Nos meus ouvidos o som do fundo de mar que embate com igual força nas minhas ideias. O nevoeiro infestado de solidões alheias sussurra nos meus ouvidos palavras que devo escrever e não esquecer. A mulher em forma de miragem ordena que não a ame. O coração tem formas e força de uma caixa negra de avião - não me deixa esquecer-te, não me deixa apagar-te.

domingo, 9 de outubro de 2011

282

Todo o processo que resulta na condição a que podemos chamar de paixão, contempla duas fases.
A vil e instantânea, resultado de uma projecção idealizada, e a crescente e inútil resultado da construção da primeira. Esta última, apesar de ser a mais duradoura é também a que menos trás à alma, e à arte. É vazia de sofrimento, sendo portanto inútil na criação perene e imortal do interior. A primeira por seu lado, infame e vazia de partilhas, é cultivada na auto-imaginação sendo portanto prejudicada pela segunda, e resultando na incapacidade de projectar a paixão no papel.
O recalcamento da segunda fase é a inteligência do artista. A vulgaridade da construção é vazia de detalhes de dor, sendo portanto inútil na criação. A construção segura, premeditada destrói a estética da dor, que deve ser experimentada e apreciada. Qualquer arte deverá ser cultivada na primeira fase.

sábado, 8 de outubro de 2011

281

Vivo nesse corredor de tempo onde nunca se sabe o que está ao fundo. A luz que lá devia estar, no fundo, já alguém desligou. Descontento-me com a companhia da escuridão e encontro na solidão uma réstia de força que me faz continuar a caminhar pelo corredor fora. Pelo caminho pequenas pedras marcam o caminho nos meus pés. Pessoas são coisa que desconheço desde muito tempo atrás. Quem? Não me lembro, não sei quem foi a última pessoa...

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

280

Quando puderes, ser puderes, tira as tuas mãos da minha garganta. Que elas impedem-me de encher os pulmões com ar para te gritar, Basta!

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

279

Sobre a mesa um cigarro pousado. Espera que eu o acenda desde que aqui me sentei. Entre a angústia de hora que não chega para me trazer certezas que não tenho a certeza de querer conhecer e o quotidiano fácil, ele continua ali pousado. O ritual pode começar a qualquer momento. Isqueiro, cinzeiro e cigarro todos lado a lado. A teimosia do nervosismo insiste para que não o faça apesar da vontade. Permanecer no estado de alerta, sem descontracção até que chegue o momento. A cada toque do telemóvel, a cada breve sinal de que algo possa acontecer a respiração pára. A hora que não chega. Sinto-me um condenado à morte no caminho do corredor. Já sei que acabará por aqui só resta saber quando.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

278

Numa rua que sabe todos os nomes, não passas despercebida. Numa rua que conhece todos os passos, todos os sons, os hábitos e costumes despertam os sentidos. Adormecido por tanto tempo o acordar não é sereno. Acordar depois de tudo e não sentir o corpo, não saber onde me encontro. Reconhecer a rua e não saber onde ela acaba. Uma sensação de vazio, uma rua sem nome e uma pessoa com tantos nomes.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

277

Queimam as palavras que seguras gentilmente entre os dedos. Ardem enquanto te preparas para me atingir com elas. Tento prender-te pelos cabelos às nuvens passageiras do nosso amor. Canto poemas que ainda não escrevi e que talvez não chegue a ter sangue suficiente para os escrever. Sou em ti como uma ilha perdida no oceano. És casa perdida na paisagem. Espreito-te em procura de uma luz, calor, um abraço que me tire da noite escura e fria.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

domingo, 2 de outubro de 2011

275

Deitei a cabeça sobre uma fotografia pousada na mesa. Procurava encontrar o tempo nela contido. Falhei. Falhei demasiadas vezes nesse tempo, continuo a falhar neste tempo. Continuo a falhar até mesmo para encontrar esse tempo. Onde se escondem as coisas que o tempo nos leva. Onde se guarda a memória. Onde estão os dias felizes que tardam em voltar. Onde estão as tardes de sol brando a queimar pele dos amantes regularmente sentados em esplanadas e jardins amando o sentimento de amar. Onde estou eu agora quando escrevo estas palavras. Tento penetrar a realidade da fotografia, quero voltar, quero viajar no tempo até lá e voltar a fazer tudo igual. Errar de novo, viver de novo e esquecer que viajei no tempo. Diz o povo que o que não tem remédio remediado está. Seja! Só quero voltar, só quero ver-te mais uma vez. Quero errar contigo. Quero ser errante contigo.

sábado, 1 de outubro de 2011

274

Afio a língua, mudo as cordas à viola. O tempo é marcado pelos passos da multidão em marcha. Uma multidão que marcha sobre cadáveres antigos. As carruagens amontoam-se, sem ordem nem classe. O choque é inevitável na hora da partida, uns sonham caminhar e cantar, seguir a canção, outros sabem que pensar não é fazer, e não esperam acontecer.